sexta-feira, 5 de julho de 2013

Perspectivas mais acessíveis de mobilidade urbana


O trajeto cotidiano de um deficiente visual no transporte público traz à tona reflexões sobre acessibilidade e mobilidade urbana. Leia o perfil e pegue carona na história de Geovanio.



Geovanio senta em lugar cedido na topic 55 não por gentileza, mas pelo direito de assento preferencial garantido por lei para as pessoas com deficiência. Foto: Marco Leonel Fukuda

É como um carro com um vidro que embaça em um dia nublado, uma manhã de junho de chuva intermitente e inesperada em Fortaleza. Aparecem diante dos olhos vultos e imagens borradas sob o céu frio e acinzentado. O contraste entre a claridade da luz solar refletida nas nuvens brancas e o sombreamento do horizonte obriga ainda assim a usar o par de óculos escuros. É assim como Geovanio Ferreira da Silva, 44 anos, estudante de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará (UECE), descreve a própria visão e se apresenta para o nosso perfil, enquanto esperamos o ônibus em uma parada da Avenida 13 de maio.

Geovanio é deficiente visual, com cerca de 0,05% da visão pelas estimativas dele, por conta do diagnóstico de retinose pigmentar. Os oftalmologistas acreditam que essa doença degenerativa da retina tem causas hereditárias, mas o paciente atribui a cegueira ao sarampo que teve aos cinco anos de idade. A retinose causou danos graves nas células da retina e do nervo ótico, na parte de trás dos olhos, com perdas significativas na captação de luz e de cores essenciais para formar as imagens.

Dou sinal à topic 55 e então subimos: eu pela frente; Geovanio tem direito à isenção da tarifa e sobe pela porta de trás. Ele me explica que o cartão de gratuidade que possui não é um passe livre. Na verdade é um acordo entre a Prefeitura de Fortaleza e os empresários do setor de transporte público para subsidiar as passagens dos idosos e das pessoas com deficiência. O validador eletrônico do cobrador registra mais uma passagem a ser cobrada depois do tesouro municipal. Para ter direito a esse cartão renovável a cada ano, a pessoa com deficiência precisa provar a sua condição, apresentando um exame de acuidade visual, um laudo médico, um formulário do posto de saúde e um comprovante de renda do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).

Geovanio recebe mensalmente um salário mínimo de Benefício de Prestação Continuada (BPC) do INSS, que o ajuda a continuar os estudos de Licenciatura em Filosofia e a sonhar com a sala de aula, no futuro, como professor. Se começar a trabalhar com carteira assinada, o deficiente visual perde o cartão de gratuidade. É contraditório também que se outras pessoas com deficiência visitarem a capital cearense, elas não terão direito à isenção da passagem de ônibus, nem de utilizar os cartões de seus locais de origem para se deslocarem pela cidade.


Geovanio Ferreira da Silva, 44, espera na parada seletiva de ônibus da Avenida Bezerra de Menezes junto com os demais usuários do transporte coletivo, no exercício cotidiano do ir e vir de todo cidadão.  Foto: Marco Leonel Fukuda


Geovanio enxergou normalmente e andou de bicicleta até os 26 anos, quando lupas para leitura e sucessivos óculos não foram suficientes para acompanhar a perda da lateralidade do campo visual. Em apenas dois anos, diminuiu rapidamente a visão periférica antes de afetar a visão central, e trouxe também a fotofobia, ou aversão à luz, ao não se sentir mais confortável em lugares muito claros ou muito escuros. Porém, surpreende pela prodigiosa memória, por ter decorado pontos de referência como o final da Avenida Domingos Olímpio, e as curvas até chegarmos ao North Shopping, cujo sopro do ar condicionado da entrada Geovanio consegue perceber pela sensibilidade da pele desde a janela da topic. Ele se acostumou a desenvolver os outros sentidos e a fazer mapas mentais com detalhes dos lugares que mais frequenta, tanto que dentro de casa ele nem precisa usar a bengala. E no caixa preferencial das lotéricas, até retirou cédulas organizadas de dentro da carteira, e perguntou, só para conferir, se eram mesmo duas notas de cem para pagar a fatura de duzentos reais do cartão de crédito.

Apesar das limitações desde que começou a perder a visão, Geovanio abraçou a religião evangélica, foi aprovado no vestibular e participou de cursos no Instituto dos Cegos e na Associação de Cegos do Estado do Ceará (ACEC). A fé e a determinação foram fundamentais para vencer inseguranças e desmistificar preconceitos em relação às pessoas com deficiência. Além da leitura em Braille, a realização de tarefas domésticas e diversos cursos profissionalizantes para a inserção no mercado de trabalho, ele ressalta a importância das aulas de orientação e mobilidade para a autonomia que adquiriu como deficiente visual.

A partir desse último curso, Geovanio aprendeu a manusear com destreza a bengala longa com movimentos de semicírculos para localizar obstáculos, proteger os passos de cada pé alternadamente, para assim andar pela cidade e até viajar sozinho. O curso de orientação e mobilidade prepara para uma vida independente, e também ensina às pessoas com perda de visão como subir e descer no transporte coletivo, além de utilizar elevador e escadas comuns ou rolantes.

Geovanio mora na Leste-Oeste e leva uma hora todos os dias no trajeto até a faculdade no bairro de Fátima, na topic 55 ou nos ônibus Albert Sabin e Grande Circular 1. Ele se recorda que há dez anos havia o ônibus Campus do Pici/Unifor da empresa São José de Ribamar, com ar condicionado e sintetizador de voz anunciando as próximas paradas. Essa demanda se soma à necessidade de melhorar o atendimento de motoristas e cobradores nos ônibus, bem como de guardas municipais e fiscais nos terminais integrados para guiar e orientar as pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida. Geovanio lamenta as recentes manifestações que ocuparam as ruas das principais cidades do Brasil não terem incluído a acessibilidade como pauta de direitos e cidadania. Ele propõe que mais campanhas educativas sejam realizadas para informar e conscientizar a população, a fim de que as pessoas com deficiência possam ser incluídas de fato na vida em sociedade.



Marco Leonel Fukuda
Músico e comunicador

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