segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Os trilhos do Mucuripe


Lembro de quando vivíamos na Varjota, e um dia acordei surpreso com o som de uma buzina contínua no meio da madrugada. Esse som tinha tantas camadas que, a princípio, eu não sabia muito bem identificar com clareza. Sabia que não era de automóvel, porque o avançado da noite não permitia um som tão forte e prolongado cortando nossos silêncios. Percebi naquele fenômeno sonoro uma distante ponta aguda que reverberava partindo para o grave; podia ser bem aquele negócio de efeito Doppler que a gente estuda na escola, mas nem sempre entende direito no cotidiano. 

Curioso, passei pelo corredor do apartamento, com intenção de ouvir melhor antes de ir para a cozinha beber um copo d’água. Parei na porta do último quarto para falar baixinho com minha mãe: - Que som é esse? É o som de um trem, meu filho, respondeu sonolenta, e ele vai pela Via Expressa rumo ao Porto do Mucuripe.

Ela pouco tempo depois de me dizer aquilo deve ter adormecido, mas o impacto daquela resposta me deixou aceso, fascinado. Tudo fez total sentido, quando liguei o ruído metálico dos trilhos à etérea buzina. Olhei pela janela e vi um conjunto interminável de vagões pesados, seguindo com pressa para o ponto final onde as velas dos jangadeiros saem para começar a pescaria noturna. Fiquei na dúvida por um instante se morar perto da zona de passagem do trem era incômodo, um distúrbio de poluição sonora, ou se era mesmo um privilégio estético, do acesso auditivo a um som que nem sabemos se a próxima geração irá (re)conhecer.

Minha família fixou residência em Fortaleza no final do ano de 2006. Migramos de Brasília, capital que viu crescer a mim, a meu irmão e nascer o nosso caçula. O metrô só chegou no começo dos anos 2000. Por ser debaixo da terra e no meio do Plano Piloto, lá a gente não ouvia tão próximo como no quarteirão de casa. A descoberta do som desse trem cargueiro de superfície me levou a um passado distante, a um estímulo que antes meus ouvidos não haviam experimentado. Despertou em mim informações de uma memória ancestral, referência simbólica presente na linhagem familiar materna.

Outro dia li em um trecho do livro Bagagem, da poetisa Adélia Prado, o seguinte: "Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica, / mas atravessa a noite, a madrugada, o dia, / atravessou minha vida, / virou só sentimento.” Coincidência ou não, o que diz a escritora mineira de Divinópolis atinge a gente de forma profunda, porque a cidade dela fica a apenas duas horas de distância da terra natal da minha mãe, Piumhi (pium-hi, “mosca d’água” em tupi guarani, mas que se lê Piuí, justamente a onomatopeia do barulho da buzina do trem). 


Se fosse locomotiva, o rio São Francisco começaria o percurso ali naquela região, na estação da Serra da Canastra. Desceria da nascente pela gelada Casca Danta, a primeira cachoeira, e seguiria viagem dos mananciais das alterosas de Minas Gerais até o Atlântico, passando por boa parte do Nordeste brasileiro. Daqui a algum tempo, transposto com a expansão dos trilhos aquáticos, o Velho Chico vai encontrar finalmente as águas sertanejas do Ceará, para onde viemos como tantos mineiros, buscando o mar, a brisa e a qualidade de vida do litoral.

A partir daquela madrugada, ouvir o trem se tornou para nós como um vínculo sonoro da nossa condição de andarilhos. O som trazia a lembrança de quem parte de um lugar longínquo com sonhos e um sentido de pertencimento, de raízes, um traço típico do imaginário daqueles que vêm de Minas. Uma tia minha, que é o museu vivo das histórias do clã dos Leonel, conta que meu bisavô foi tropeiro levando mercadorias nas tropas de mulas por léguas a perder de vista. Era de um espírito viajante que passou para as gerações seguintes, para o meu avô fazendeiro, que tentou a sorte nos garimpos do interior do Pará. Os assobios desse trem, com o tempo, tornaram-se familiares, talvez comuns como o zumbido da geladeira, porém um elemento muito mais afetivo e poético da paisagem sonora. 


Marco Leonel Fukuda
Músico e comunicador


Leia mais

imagens: www.cinemaemdebate.com
             www.portaldocamaleaophb.blogspot.com