Era uma tarde de quinta-feira na Avenida 13 de maio em Fortaleza, por volta de cinco horas. Eu estava na parada de ônibus em frente à Reitoria da Universidade Federal do Ceará esperando, como tantos estudantes, pela topic 03. Naquele dia, o transporte demorou mais do que de costume, e outras pessoas ao meu lado também aguardavam pacientemente pela chegada do ônibus. Era o feriado de Corpus Christi, mas o que eu vi foi uma ave singular se equilibrando na beira da calçada. Não era uma pomba branca, símbolo da paz e da espiritualidade cristã, mas um pombo daqueles ordinários e sujos. Porém, o modo dele de caminhar e de ciscar o chão prendeu a minha vista. Não tive nojo em vê-lo, como teria em outras circunstâncias. A performance do animal me despertou a curiosidade e me motivou a escrever.
O pombo caminhava com uma naturalidade espantosa pela rua. Não tinha medo das motos, nem dos carros que passavam rápido. No rastro deles, vinham ligeiras ventanias que assustariam outros pássaros. Mas não o pombo, que ciscava como se estivesse em um quintal espaçoso, ou avaliando cada prato da gôndola de um buffet ou de um self-service. Continuava tranquilo bicando o asfalto e a areia, recolhendo grãos de cuscuz e de arroz. Era um banquete de lixo e de restos de comida, de quem se farta e se delicia da nossa cultura de desperdícios.
Era engraçado porque o pombo parecia sentir quando o semáforo fechava. E eu olhava de vez em quando para conferir se o meu ônibus não estava para chegar. Depois, por inúmeras vezes, voltei o olhar para a ave, e permaneci espectador daquele ato paradoxal e fantástico de tão cotidiano e incomum. Era só diminuir momentaneamente o fluxo de veículos, que ele descia novamente da calçada, e andava desajeitado até quase o meio da avenida. Passei a temer pela segurança do pombo, com aquela torcida interior que a gente tem para o trapezista não cair e se esborrachar no chão batido da arena do circo.
O bico resistente do bicho batia direto na rua, palco de todo o breve espetáculo. Foi impressionante a capacidade seletiva dele, de saber distinguir a comida no meio de pequenas pedras, fuligem, grãos de areia e folhas. Enchia o papo de fragmentos moídos de milho, que ali dispersos não davam pistas de procedência. Indiferente ao meu estado de voyeur, ele desfilava satisfeito, totalmente acostumado àquilo, como se fosse algo rotineiro e previsível. Tinha até um certo ar irônico, arrogante, por sempre escapar ileso das investidas furiosas dos automóveis. Parecia imune a ser atropelado, à causa mortis de possíveis parentes ou amigos animais das ruas.
Quando voltava para a calçada, tentava desviar dos pedestres, com medo. Tinha pavor de skatistas, de ser esmagado por aquele conjunto incompreensível de madeira e de duas rodas. Com habilidade, conseguiu escapar de prováveis pisadas e chutes de grupos de gente distraída. Foi se proteger debaixo da marquise da parada de ônibus, próximo à bicicleta do vendedor de doces. Mas permanecia agitado e faminto, sem parar de se mexer um instante sequer. O doceiro se abaixou para buscar uma vasilha vermelha, que estava debaixo da bicicleta de mesma cor. Abriu a tampa, puxou uma colher e jogou restos do almoço no chão.
Estava resolvido o enigma. Era daquela insuspeita vasilha vermelha de onde vinha o alimento do pombo naquela hora. O açucarado vendedor tinha por aquela ave o mesmo sentimento dos aposentados que vão aos parques distribuir migalhas de pão para os pombos. Com grãos de outros cereais, era solidário e piedoso para com o bicho, que também tira o sustento do que consegue na rua. O homem repartiu as sobras da marmita e provava das guloseimas que venderia em um dia de mais movimento.
Enquanto o meu ônibus não chegava, segui atento os passos daquele pombo performático. Para finalizar a apresentação, de repente, a ave tomou um impulso do chão, bateu as asas e voou, não mais de estômago vazio. Desapareceu no meio dos fios elétricos e dos galhos das árvores altas. Terminou o espetáculo com a dignidade e a convicção de um artista para os dois únicos espectadores, o doceiro e eu. Deu uma vontade de bater palmas para o pombo, e até uma ponta de inveja, porque ele era o próprio meio de transporte, e chegaria bem antes de mim ao ponto de destino.
Marco Leonel Fukuda
Músico e comunicador
Foto: www.amareisempre.blogspot.com
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