O trajeto cotidiano de um deficiente visual no transporte público traz à tona reflexões sobre acessibilidade e mobilidade urbana. Leia o perfil e pegue carona na história de Geovanio.
É como um carro com um vidro que embaça em um dia nublado, uma manhã de junho de chuva intermitente e inesperada em Fortaleza. Aparecem diante dos olhos vultos e imagens borradas sob o céu frio e acinzentado. O contraste entre a claridade da luz solar refletida nas nuvens brancas e o sombreamento do horizonte obriga ainda assim a usar o par de óculos escuros. É assim como Geovanio Ferreira da Silva, 44 anos, estudante de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará (UECE), descreve a própria visão e se apresenta para o nosso perfil, enquanto esperamos o ônibus em uma parada da Avenida 13 de maio.
Geovanio é deficiente visual, com cerca de 0,05% da visão pelas estimativas dele, por conta do diagnóstico de retinose pigmentar. Os oftalmologistas acreditam que essa doença degenerativa da retina tem causas hereditárias, mas o paciente atribui a cegueira ao sarampo que teve aos cinco anos de idade. A retinose causou danos graves nas células da retina e do nervo ótico, na parte de trás dos olhos, com perdas significativas na captação de luz e de cores essenciais para formar as imagens.
Dou sinal à topic 55 e então subimos: eu pela frente; Geovanio tem direito à isenção da tarifa e sobe pela porta de trás. Ele me explica que o cartão de gratuidade que possui não é um passe livre. Na verdade é um acordo entre a Prefeitura de Fortaleza e os empresários do setor de transporte público para subsidiar as passagens dos idosos e das pessoas com deficiência. O validador eletrônico do cobrador registra mais uma passagem a ser cobrada depois do tesouro municipal. Para ter direito a esse cartão renovável a cada ano, a pessoa com deficiência precisa provar a sua condição, apresentando um exame de acuidade visual, um laudo médico, um formulário do posto de saúde e um comprovante de renda do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).
Geovanio recebe mensalmente um salário mínimo de Benefício de Prestação Continuada (BPC) do INSS, que o ajuda a continuar os estudos de Licenciatura em Filosofia e a sonhar com a sala de aula, no futuro, como professor. Se começar a trabalhar com carteira assinada, o deficiente visual perde o cartão de gratuidade. É contraditório também que se outras pessoas com deficiência visitarem a capital cearense, elas não terão direito à isenção da passagem de ônibus, nem de utilizar os cartões de seus locais de origem para se deslocarem pela cidade.
Geovanio enxergou normalmente e andou de bicicleta até os 26 anos, quando lupas para leitura e sucessivos óculos não foram suficientes para acompanhar a perda da lateralidade do campo visual. Em apenas dois anos, diminuiu rapidamente a visão periférica antes de afetar a visão central, e trouxe também a fotofobia, ou aversão à luz, ao não se sentir mais confortável em lugares muito claros ou muito escuros. Porém, surpreende pela prodigiosa memória, por ter decorado pontos de referência como o final da Avenida Domingos Olímpio, e as curvas até chegarmos ao North Shopping, cujo sopro do ar condicionado da entrada Geovanio consegue perceber pela sensibilidade da pele desde a janela da topic. Ele se acostumou a desenvolver os outros sentidos e a fazer mapas mentais com detalhes dos lugares que mais frequenta, tanto que dentro de casa ele nem precisa usar a bengala. E no caixa preferencial das lotéricas, até retirou cédulas organizadas de dentro da carteira, e perguntou, só para conferir, se eram mesmo duas notas de cem para pagar a fatura de duzentos reais do cartão de crédito.
Apesar das limitações desde que começou a perder a visão, Geovanio abraçou a religião evangélica, foi aprovado no vestibular e participou de cursos no Instituto dos Cegos e na Associação de Cegos do Estado do Ceará (ACEC). A fé e a determinação foram fundamentais para vencer inseguranças e desmistificar preconceitos em relação às pessoas com deficiência. Além da leitura em Braille, a realização de tarefas domésticas e diversos cursos profissionalizantes para a inserção no mercado de trabalho, ele ressalta a importância das aulas de orientação e mobilidade para a autonomia que adquiriu como deficiente visual.
A partir desse último curso, Geovanio aprendeu a manusear com destreza a bengala longa com movimentos de semicírculos para localizar obstáculos, proteger os passos de cada pé alternadamente, para assim andar pela cidade e até viajar sozinho. O curso de orientação e mobilidade prepara para uma vida independente, e também ensina às pessoas com perda de visão como subir e descer no transporte coletivo, além de utilizar elevador e escadas comuns ou rolantes.
Geovanio mora na Leste-Oeste e leva uma hora todos os dias no trajeto até a faculdade no bairro de Fátima, na topic 55 ou nos ônibus Albert Sabin e Grande Circular 1. Ele se recorda que há dez anos havia o ônibus Campus do Pici/Unifor da empresa São José de Ribamar, com ar condicionado e sintetizador de voz anunciando as próximas paradas. Essa demanda se soma à necessidade de melhorar o atendimento de motoristas e cobradores nos ônibus, bem como de guardas municipais e fiscais nos terminais integrados para guiar e orientar as pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida. Geovanio lamenta as recentes manifestações que ocuparam as ruas das principais cidades do Brasil não terem incluído a acessibilidade como pauta de direitos e cidadania. Ele propõe que mais campanhas educativas sejam realizadas para informar e conscientizar a população, a fim de que as pessoas com deficiência possam ser incluídas de fato na vida em sociedade.
Marco Leonel Fukuda
Músico e comunicador
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Geovanio senta em lugar cedido na topic 55 não por gentileza, mas pelo direito de assento preferencial garantido por lei para as pessoas com deficiência. Foto: Marco Leonel Fukuda |
É como um carro com um vidro que embaça em um dia nublado, uma manhã de junho de chuva intermitente e inesperada em Fortaleza. Aparecem diante dos olhos vultos e imagens borradas sob o céu frio e acinzentado. O contraste entre a claridade da luz solar refletida nas nuvens brancas e o sombreamento do horizonte obriga ainda assim a usar o par de óculos escuros. É assim como Geovanio Ferreira da Silva, 44 anos, estudante de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará (UECE), descreve a própria visão e se apresenta para o nosso perfil, enquanto esperamos o ônibus em uma parada da Avenida 13 de maio.
Geovanio é deficiente visual, com cerca de 0,05% da visão pelas estimativas dele, por conta do diagnóstico de retinose pigmentar. Os oftalmologistas acreditam que essa doença degenerativa da retina tem causas hereditárias, mas o paciente atribui a cegueira ao sarampo que teve aos cinco anos de idade. A retinose causou danos graves nas células da retina e do nervo ótico, na parte de trás dos olhos, com perdas significativas na captação de luz e de cores essenciais para formar as imagens.
Dou sinal à topic 55 e então subimos: eu pela frente; Geovanio tem direito à isenção da tarifa e sobe pela porta de trás. Ele me explica que o cartão de gratuidade que possui não é um passe livre. Na verdade é um acordo entre a Prefeitura de Fortaleza e os empresários do setor de transporte público para subsidiar as passagens dos idosos e das pessoas com deficiência. O validador eletrônico do cobrador registra mais uma passagem a ser cobrada depois do tesouro municipal. Para ter direito a esse cartão renovável a cada ano, a pessoa com deficiência precisa provar a sua condição, apresentando um exame de acuidade visual, um laudo médico, um formulário do posto de saúde e um comprovante de renda do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).
Geovanio recebe mensalmente um salário mínimo de Benefício de Prestação Continuada (BPC) do INSS, que o ajuda a continuar os estudos de Licenciatura em Filosofia e a sonhar com a sala de aula, no futuro, como professor. Se começar a trabalhar com carteira assinada, o deficiente visual perde o cartão de gratuidade. É contraditório também que se outras pessoas com deficiência visitarem a capital cearense, elas não terão direito à isenção da passagem de ônibus, nem de utilizar os cartões de seus locais de origem para se deslocarem pela cidade.
Geovanio enxergou normalmente e andou de bicicleta até os 26 anos, quando lupas para leitura e sucessivos óculos não foram suficientes para acompanhar a perda da lateralidade do campo visual. Em apenas dois anos, diminuiu rapidamente a visão periférica antes de afetar a visão central, e trouxe também a fotofobia, ou aversão à luz, ao não se sentir mais confortável em lugares muito claros ou muito escuros. Porém, surpreende pela prodigiosa memória, por ter decorado pontos de referência como o final da Avenida Domingos Olímpio, e as curvas até chegarmos ao North Shopping, cujo sopro do ar condicionado da entrada Geovanio consegue perceber pela sensibilidade da pele desde a janela da topic. Ele se acostumou a desenvolver os outros sentidos e a fazer mapas mentais com detalhes dos lugares que mais frequenta, tanto que dentro de casa ele nem precisa usar a bengala. E no caixa preferencial das lotéricas, até retirou cédulas organizadas de dentro da carteira, e perguntou, só para conferir, se eram mesmo duas notas de cem para pagar a fatura de duzentos reais do cartão de crédito.
Apesar das limitações desde que começou a perder a visão, Geovanio abraçou a religião evangélica, foi aprovado no vestibular e participou de cursos no Instituto dos Cegos e na Associação de Cegos do Estado do Ceará (ACEC). A fé e a determinação foram fundamentais para vencer inseguranças e desmistificar preconceitos em relação às pessoas com deficiência. Além da leitura em Braille, a realização de tarefas domésticas e diversos cursos profissionalizantes para a inserção no mercado de trabalho, ele ressalta a importância das aulas de orientação e mobilidade para a autonomia que adquiriu como deficiente visual.
A partir desse último curso, Geovanio aprendeu a manusear com destreza a bengala longa com movimentos de semicírculos para localizar obstáculos, proteger os passos de cada pé alternadamente, para assim andar pela cidade e até viajar sozinho. O curso de orientação e mobilidade prepara para uma vida independente, e também ensina às pessoas com perda de visão como subir e descer no transporte coletivo, além de utilizar elevador e escadas comuns ou rolantes.
Geovanio mora na Leste-Oeste e leva uma hora todos os dias no trajeto até a faculdade no bairro de Fátima, na topic 55 ou nos ônibus Albert Sabin e Grande Circular 1. Ele se recorda que há dez anos havia o ônibus Campus do Pici/Unifor da empresa São José de Ribamar, com ar condicionado e sintetizador de voz anunciando as próximas paradas. Essa demanda se soma à necessidade de melhorar o atendimento de motoristas e cobradores nos ônibus, bem como de guardas municipais e fiscais nos terminais integrados para guiar e orientar as pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida. Geovanio lamenta as recentes manifestações que ocuparam as ruas das principais cidades do Brasil não terem incluído a acessibilidade como pauta de direitos e cidadania. Ele propõe que mais campanhas educativas sejam realizadas para informar e conscientizar a população, a fim de que as pessoas com deficiência possam ser incluídas de fato na vida em sociedade.
Marco Leonel Fukuda
Músico e comunicador
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